sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Texto: Piano

  A luz esbatida que atravessava a janela evidenciava as partículas de pó que dançavam pela velha sala de estar à melodia da musica do meu piano. Tocava em cada tecla com todo o prazer do mundo e modéstia à parte, o som que emitia parecia divino. Cerrei os lábios e encostei-me na cadeira. A música que eu eu estava a tocar era demasiado melancólica e esta fizera-me viajar até ao mundo do meu passado, o meu doloroso passado. Assim, com a mágoa a invadir-me o espírito, levantei-me e encostei-me à janela, observando através da mesma. Relembrei-me do dia em que os meus pais me haviam deixado de lágrimas a escorrer pelo rosto e com as mãos a tremer. O pior dia da minha vida. De cada vez que me relembrava daquele som horrível, o guinar dos pneus, arrepiava-me de alto a baixo. O carro batera frontalmente com uma árvore, deixando os meus pais sem vida e uma criança assustada a gritar em estado de choque no banco detrás enquanto via a sua vida a ser destruída, pelo menos parte dela.
  Olhei-me ao espelho. Neste, podia observar o reflexo de uma rapariga magríssima, alta e de longos cabelos castanhos que lhe contornavam o corpo até ao umbigo. Os seus caracóis formavam formas estranhas, sendo de longe, definidos. Os seus olhos eram verdes, de um verde profundo e a sua pele era pálida. Envergava negras vestes que lhe cobriam quase todo o corpo do pescoço aos pés. Os seus braços nus ajeitavam a longa saia, mostrando uns sapatos rasos que lhe protegiam os frágeis pés.
  Já se haviam passado doze anos desde o dia do acidente, mas para mim, parecia ter sido ontem e doía-me como se tivesse sido há uma hora atrás. Enfim, o que aprendera com os meus pais é que a vida tem muitas surpresas, más e boas, e há pessoas que saem da nossa vida, embora muitas vezes de forma inesperada e há outras que entram nela e a preenchem de novo. Não podemos controlar isso. Por isso, segui em frente, embora continuasse a prestar luto à morte das pessoas que mais amei na vida. O meu sonho de pequena sempre foi cantar e tocar e os meus pais apoiavam-me bastante nesta minha ambição, ao contrário de muitos outros. Assim, tal como eles me haviam feito prometer-lhes, lutei pelo meu sonho e de momento sou uma artista pouco conhecida, mas bastante apreciada pelos demais. Dona de um estilo musical muito próprio, expressava assim as minhas mágoas, melancolicamente.
  O meu coração continuava sem ser preenchido por alguém, talvez porque com o trauma de ter perdido as pessoas mais importantes para mim, tivesse medo de perder mais alguém, de modo a que não permitia que alguém entrasse na minha vida assim tão facilmente.
  Fosse quem fosse que tivesse a chave para o meu coração, haveria de estar algures no mundo, algures.

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